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A ESTRATÉGIA-OPERACIONAL NA REVOLUÇÃO DE 1924[1]
HÉLIO TENORIO DOS SANTOS[2]

“De todas as operações da guerra, as mais difíceis são, incontestavelmente, as retiradas. Isto é tão verdadeiro que o célebre Príncipe de Ligne dizia que ele não conseguia conceber como um exército conseguia se retirar com sucesso.” - Barão de Jomini

A Revolução Paulista ou, como é conhecida hoje, a Revolução de 1924, é um dos grandes momentos da história brasileira. Graças à mobilização de grandes efetivos em operações de combate sobre extenso território, essa Revolução é rica em ensinamentos de estratégia-operacional, que é o objeto deste artigo.
O plano militar dos revolucionários, idealizado pelos irmãos Joaquim e Juarez Távora, era tomar a cidade de São Paulo em poucas horas, através do levante simultâneo das unidades do Exército em Quitaúna e Santana, e da Força Pública Paulista na Luz. Uma vez senhores da capital, enviariam destacamentos ligeiros para Barra do Piraí e Santos.
Quando as guarnições do Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais fossem enviadas para reprimir o levante, esperavam que estas também aderissem à Revolução. Todas as tropas federais e estaduais localizadas no território paulista seriam concentradas em São Paulo, sob comando supremo do General Isidoro Dias Lopes. Este exército revolucionário lançaria, então, uma ofensiva em direção ao Rio de Janeiro, capital da República, para deposição do governo. O flanco leste da Revolução seria protegido contra um desembarque com guardas na Serra do Mar, nos acessos de Santos e Paranaguá.
Iniciado o levante na madrugada de 5 de julho, houve resistência acirrada por parte de algumas unidades da Força Pública que permaneceram fiéis à legalidade, recebendo reforços do Exército e Marinha. O plano inicial dos revolucionários foi frustrado e os combates pela posse da capital arrastaram-se indefinidos pelos dias seguintes, em uma luta de linhas confusas e poucos movimentos cordenados.
A posse da capital só se decidiu na manhã de 9 de julho, após quatro dias de intensa luta de barricadas e bombardeios de artilharia, quando as forças legais abandonaram o perímetro urbano, indo concentrar-se na periferia afastada de Guaiaúna e Ipiranga. Os legalistas, expulsos de São Paulo, controlavam, entretanto, os acessos à capital por Santos e pelo Vale do Paraíba, mais uma vez frustrando a estratégia revolucionária de marchar para o Rio de Janeiro.
Nos primeiros dias da Revolução, várias unidades do interior do Estado aderiram, mas nas demais regiões e em outras capitais o movimento revolucionário falhou. No nível estratégico a vitória mais importante para os revolucionários viria, ironicamente, pelas mãos de um oficial legalista. Desde o dia 5 estavam estacionados em Bauru 300 homens da Força Pública, equipados e prontos para marcharem rapidamente sobre o flanco norte da capital. Se este movimento legalista tivesse sido executado, a qualquer momento, durante as duas primeiras semanas de luta, teria sido fatal à Revolução. Mas, para perplexidade geral, em 10 de julho o comandante da tropa, Major Januario Rocco, dispersa o batalhão e deserta, sem nenhum combate, deixando Bauru aberta aos revolucionários, que a ocupam com forças inexpressivas.
Na capital a retirada das forças legalistas representou o fim dos combates nos bairros centrais da cidade, dando início a uma série de operações para a sua retomada, na Batalha de São Paulo. As forças legalistas organizaram-se em uma grande Divisão, sob comando do General Eduardo Sócrates. Esta Divisão compôs-se, no correr do mês, de cinco Brigadas atuando contra o centro da cidade. Eram elas a Brigada Coronel João Gomes Ribeiro, atuando pelo nordeste, Brigada Coronel Pantaleão Teles Ferreira e Brigada General Florindo Ramos, escalonadas pelo leste, Brigada General Tertuliano Potyguara, pelo sudeste, e Brigada General Carlos Arlindo, pelo sul. A tropa remanescente da Força Pública legalista, organizada em um Regimento de Guerra sob comando do Coronel Pedro Dias de Campos, operava independente sobre o Ipiranga e Cambuci. A Divisão tinha ainda uma sexta brigada de artilharia divisionária, a Brigada General João José de Lima.
Para fazer face a estas forças, os revolucionários, sob comando do General Isidoro Dias Lopes e do Major Miguel Costa, do Regimento de Cavalaria da Força Pública, estabeleceram diversos setores em linhas contínuas da margem sul do Tietê até o Paraíso, com guardas móveis extendidas para o norte e sudoeste, ficando o flanco móvel de Guarulhos à Vila Guilherme sob comando do Cap Asdrubal Gwyer de Azevedo; os setores do Brás, Mooca e Belenzinho, que tiveram diversos comandantes; o setor do Cambuci, sob o Capitão Luiz França Albuquerque; o setor da Liberdade, sob o Capitão Azhaury de Sá Brito; e a guarda móvel de Casa Branca a Pinheiros, sob o Tenente Bonifacio Rodrigues da Silva.
Em números totais na capital, os revolucionários dispunham de 4 a 5.000 homens, distribuídos em cerca de 15 unidades de combate, enquanto os legalistas tinham cerca de 14 a 15.000 homens, em cerca de 50 unidades de combate.
A luta pela cidade de São Paulo foi violentíssima, especialmente nos setores do Ipiranga, Cambuci, Mooca, Brás e Paraíso, envolvendo combates de rua constantes e bombardeio indiscriminado de artilharia, atingindo fortemente a população civil.
No quadro estratégico-operacional todos os movimentos dependiam das ferrovias. Os legalistas dispunham da Divisão Sócrates, já em contato com a Capital pelo leste e litoral. Além desta, pelo eixo sudoeste, Curitiba-São Paulo, progredia para Itapetininga a Coluna do General Azevedo Costa. No eixo norte, Minas-São Paulo, convergiam para Moji-Mirim as forças da Coluna do General Martins Pereira. No eixo noroeste, Mato Grosso-São Paulo, se organizava a Coluna do General Nepomuceno Costa.
Contra estas forças os revolucionários detinham o controle de um triângulo forte, marcado pelos vértices em São Paulo, Sorocaba e Campinas, projetando fracas guardas avançadas no cone formado por Bauru e Araraquara, pelos eixos formados por Limeira, Araras, Pirassununga e Descalvado; Rio Claro, São Carlos, Araraquara e Jaboticabal; Bauru, Agudos, Jaú, Mineiros do Tietê, Dois Córregos e Bocaina.
Com o fracasso do plano inicial de marchar sobre o Rio de Janeiro, o objetivo estratégico da Revolução tornou-se manter a luta e a posse da capital de São Paulo, estimulando os levantes em outros Estados que acreditavam iriam seguir e, principalmente, ligar-se com o estado do Rio Grande do Sul. Para tanto, a posse da linha formada por Sorocaba, Itu e Campinas era crucial, pois garantia a liberdade de movimento da Revolução.
Os revolucionários, que sofriam de inferioridade numérica e material, e sem nenhuma tropa reserva expressiva, viram o perigo de não conseguirem resistir aos avanços legalistas do norte e sudoeste, o que os deixaria, em breve, totalmente cercados na capital, encerrando a Revolução. Por isto, entre 17 e 19 de julho, lançam duas companhias com a missão de manter as linhas de comunicação com o interior do Estado e impedir os avanços legalistas pelos eixos ferroviários. Da Força Pública seguem o Capitão Francisco Bastos, para Sorocaba, pela Estrada de Ferro Sorocabana, e o 1º Tenente João Cabanas, para Campinas, pela Estrada de Ferro Mogiana, cada um com uma companhia. Segue também, mas sem tropa, o Capitão Otávio Muniz Guimarães, do Exército, pela Estrada de Ferro Paulista e Noroeste, para buscar ligação com os revolucionários de Mato Grosso.
Cabanas parte de São Paulo na madrugada de 19 de julho, com a missão de ir a Moji-Mirim e frustrar a concentração de tropas legalistas na Mogiana, estimados em 1.200 homens, impedindo que atingissem o objetivo estratégico-operacional de Campinas. A tropa de Cabanas era composta por mais um tenente da Força Pública e 95 homens, equipados com fuzis, uma peça de artilharia de montanha, três metralhadoras e quatro fuzis-metralhadores.
As ações táticas de Cabanas entre 19 e 27 de julho são exemplares na aplicação dos princípios da guerra. Com uma força numericamente inferior, Cabanas toma, mantém e explora a iniciativa dos movimentos. Identifica os pontos decisivos do dispositivo inimigo e, manobrando com velocidade e surpresa, concentra todo seu poder de combate em ações decisivas. As suas ações, quando estudadas em detalhe, são perfeitas.
Em 19 de julho chega a Campinas e aplica vários ardis para iludir os legalistas quanto à dimensão e direção de progressão de sua força. Empregando diversos métodos de movimento, no dia seguinte, 20 de julho, segue para o leste, ataca e toma Jaguariúna, e de lá continua a leste para Amparo, que também conquista. Na manhã de 21, enquanto os legalistas esperavam seu ataque ao flanco sul de Moji-Mirim, vindo de Campinas, Cabanas ataca e toma Itapira, em eixo paralelo, vindo de Amparo.
Cabanas permanece em Itapira dois dias, ameaçando o flanco leste de Moji-Mirim, forçando os legalistas a reorientarem o dispositivo de defesa do sul para o leste. A 23, pela manhã, monta uma emboscada e consegue repelir o avanço de um batalhão legalista vindo de Jacutinga, mais a leste de Itapira, forçando em Moji-Mirim a idéia da possibilidade do isolamento.
Incapaz de tomar Moji-Mirim em um ataque frontal, Cabanas manobra em segredo e retrai a tropa de volta para Amparo, ao sul, Jaguariúna e Campinas, a oeste, e, de lá, ataca Moji-Mirim rumo norte, ainda no dia 23, pelo agora desprotegido flanco sul da cidade, após um movimento de mais de 90 kms.
Moji-Mirim é tomada pelos revolucionários que, em inferioridade de cerca de 10 para 1, repelem o restante da Coluna Martins Pereira de volta a Minas Gerais, neutralizando a capacidade ofensiva legalista para os próximos dias.
Na mesma noite de 23, após tomar Moji-Mirim, Cabanas inicia movimento sobre Ribeirão Preto, onde se concentravam 1.000 soldados legalistas. Mais uma vez emprega ardis para fazer sua pequena tropa parecer mais numerosa do que era. Chega até Casa Branca e de lá consegue dispersar a força legalista sem combate, eliminando completamente as ameaças ao norte de Campinas.
A 24 segue para Eleutério, cobrindo cerca de 130 kms, e, sem combate, repele de volta para Minas Gerais uma força de cavalaria legalista que tentava progredir de Pouso Alegre para Moji-Mirim.
A 25 retorna a Campinas. Sabedor das dificuldades que a Revolução enfrentava em Sorocaba, ante o avanço legalista, Cabanas solicita autorização para deixar o setor da Mogiana, já limpo de inimigos. Seu plano era seguir por Itú e atacar o flanco esquerdo da Coluna Azevedo Costa. Caso isso não fosse possível, propunha-se a contornar São Paulo e atacar a Divisão Sócrates pelo sul, por Santo Amaro.
Suas propostas ao Quartel General da Revolução não tiveram resposta e, ciente da importância vital de manter a ofensiva, a 26 de julho decide atacar Espírito Santo do Pinhal, distante cerca de 100 quilômetros, onde ainda havia uma força legalista estimada entre 200 a 600 homens. Antes de chegar a Pinhal a força de Cabanas cai em emboscada e tem que avançar lutando 3 kms até a cidade, que consegue tomar, após o mais violento combate da campanha da Mogiana, repelindo os legalistas.
Enquanto estas ações se desenrolavam na região da Mogiana, em São Paulo a Divisão Sócrates, operando sem um planejamento único consistente, continuava a tentar progredir sobre a capital em movimentos descordenados. Os revolucionários, embora em inferioridade numérica, ocupavam a posição central e daí conseguiam manobrar suas forças com velocidade pelas linhas internas, concentrando a massa nos pontos sob ataque, aparando todas as investidas legalistas.
Com a Coluna Martins Pereira desbaratada e a Coluna Nepomuceno Costa ainda em Mato Grosso, somente a Coluna Azevedo Costa obteve sucesso estratégico-operacional. A 25 de julho os legalistas tomam Sorocaba, onde o Capitão Francisco Bastos, diferente de Cabanas, havia se limitado a manter fortes posições defensivas. No dia seguinte, 26, os legalistas tomam Pantojo e Mairinque. Os combates na região são intensos, com emprego de artilharia por ambos os lados e até de um trem blindado revolucionário.
Nesse contexto, a posse de Campinas, protegida por Moji-Mirim, era a única porta aida aberta para o escoamento das tropas revolucionárias de São Paulo, que não tinham condição de manter indefinidamente a capital. O caminho ferroviário seguia de São Paulo para Campinas, Limeira, Rio Claro e para os entroncamentos ferroviários de Itirapina e Bauru, pela estrada de ferro Paulista.
Após tomar Sorocaba, era iminente o avanço de Azevedo Costa sobre Itú e Jundiaí, e daí sobre Campinas, onde fecharia a porta de saída da Revolução. Em São Paulo os combates prosseguiam intensos nos mesmos setores dos primeiros dias, com bombardeio de artilharia sobre, praticamente, toda a cidade.
Assim, na noite de 27 para 28 de julho, após 22 dias de luta initerrupta na capital e sem esperança de receber nenhuma outra adesão, os revolucionários retraem suas forças para a Estação da Luz e de lá expedem diversos comboios em direção a Campinas.
A retirada das tropas se inicia às 20 horas com o embarque do flanco esquerdo de Guarulhos a Vila Guilherme e a guarda móvel do flanco direito de Casa Branca a Pinheiros. Às 21 embarca o setor da Liberdade, às 22 o setor do Cambuci e às 23 os setores da Mooca e Belenzinho. O último trem deixa a Luz às 2 da manhã.
O serviço é todo feito com precisão matemática e os revolucionários conseguem partir de São Paulo em uma sucessão de comboios. Os números impressionam. Conseguem transportar toda a artilharia (20 canhões 75mm e 6 canhões 105mm, com 2.000 tiros), armamento à farta (provavelmente na faixa de 7.000 fuzis e 200 metralhadoras e fuzis-metralhadores), munição (2.000.000 de cartuchos), cavalos, automóveis, combustível, material de guerra, mantimentos, material hospitalar, feridos e tropas, estas estimadas na retirada entre 3.500 a 5.000 homens.
As linhas avançadas legalistas, incapazes de manter um contato perfeito, só percebem a retirada na manhã do dia 28, quando encontram as trincheiras revolucionárias guarnecidas por bonecos de palha vestidos com uniformes e bonés, encerrando-se aí a Batalha de São Paulo.
A vanguarda da Coluna Azevedo Costa chega a Campinas ao meio-dia de 28 de julho, horas após os revolucionários evacuarem a cidade. De Campinas os revolucionários seguiram para Rio Claro, Itirapina e Bauru, onde o grosso chega ainda no dia 28.
Após 23 dias de operações empregando grande parte do poder de combate disponível no Brasil, os legalistas não conseguiram aprisionar os revolucionários. Do ponto de vista estratégico-operacional, a retirada dos revolucionários de São Paulo foi uma operação militar espetacular, pelas condições em que foi feita, as ameaças que enfrentou e o sucesso total que alcançou.
Em Bauru uma nova fase de operações se inicia. Os revolucionários reorganizam suas forças e seguem para São Manoel e Botucatu, depois tomando o rumo de Avaré, Ourinhos, Salto Grande, Paraguaçu Paulista, Sapezal, Quatá, João Ramalho, Laranja Doce, Indiana, Presidente Prudente, Presidente Bernardes, Santo Anastácio, Caiuá e Porto Tibiriçá.
Nesta fase da Revolução, da Mogiana ao Rio Paraná, a Coluna de Cabanas, que teve papel crucial no êxito da retirada, executa as ações retardadoras para proteger o escoamento revolucionário. Cabanas combate com sucesso, durante 42 dias, a vanguarda das Colunas Martins Pereira, depois Malan d’Angrogne, e Azevedo Costa, por cerca de 1.200 kms.
Alcançado o Rio Paraná, os revolucionários tentam sem sucesso a invasão do Mato Grosso, sendo repelidos em Três Lagoas, após o quê iniciam a descida do Rio Paraná até a região do Iguaçú, no Estado do Paraná, onde a guerra de posição prossegue sem trégua contra as forças legalistas, agora sob comando único do General Cândido Rondon.
Em 10 de abril de 1925, após meses de combates, os legalistas tomam Catanduvas, centro de gravidade do dispositivo revolucionário, tornando insustentável o prosseguimento da luta para os revolucionários. A queda de Catanduvas sinalizou o fim da Revolução Paulista e o início da marcha da 1ª Divisão Revolucionária, a famosa Coluna Miguel Costa-Prestes, mas esta, caro leitor, definitivamente, é outra história.




[1] artigo publicado na REVISTA DIREITO MILITAR / Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais (Amajme). Imprenta: Florianópolis, Amajme, 1996. Referência: v. 16, n. 103, p. 5–8, set./out., 2013.
[2] O autor é Major da PMESP, acadêmico emérito da Academia de História Militar Terrestre do Brasil, cadeira General Miguel Costa.



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