segunda-feira, 4 de agosto de 2014

João Cabanas Preso por Desacato

Tenho lido muitos jornais antigos procurando, através deles, remontar a vida do meu avô.
Pois bem, me deparei com uma matéria que contava sobre a prisão do meu avô (uma delas), em novembro de 1934. Ele assistia à uma apuração eleitoral e foi amarrar ou ajeitar os cordões do sapato, o juiz não gostou e passou-lhe uma descompostura. Quando tentou se explicar, o juiz mandou que lhe prendessem.
Lembrei imediatamente do recorte de jornal, que minha mãe  há muito mantém guardado e pelo qual nutre grande carinho. É uma crônica escrita pelo Rubem Braga, que se refere a esta notícia. Ei-la:

O Pé Cabanas


Acontece que o coronel Cabanas possui dois pés. É pouco, na verdade: são necessários quatro para subir na vida. Quatro: dois para andar e dois para dar coices.
O coronel tinha dois. Um deles estava pousado no chão. O outro estava colocado sobre o travessão inferior de uma cadeira.
Colocar um pé sobre o travessão inferior de uma cadeira é um dos maiores prazeres de que pode gozar a humanidade.
Observe um homem que senta para tomar um cafezinho com um amigo. Observai o pé deste homem. O travessão e o pé começam logo um “flirt”. O travessão atrai o pé. O pé se ergue inconscientemente, toca na parte inferior do assento da cadeira vizinha e desce. Encontrando apoio, o pé se estabiliza em uma posição inclinada. O calcanhar fica na parte de baixo, e a ponta do pé se ergue, às vezes, tocando o assento da cadeira e incomodando o indivíduo que nela está sentado.
Nenhum indivíduo estava sentado na cadeira sobre cujo travessão inferior o tenente-coronel João Cabanas depositara o seu pé.
Há outras versões à respeito do assunto.
Alguns afirmam que o pé estava sobre um banco, outros insinuam que o tenente-coronel João Cabanas pusera o pé sobre uma grade para amarrar o sapato. Ninguém, entretanto, afirma que o pé estava colocado sobre o abdômen do juiz eleitoral, sobre o pescoço de uma senhorita loura ou contra o nariz de um deputado qualquer.
Mesmo assim, o certo é que o pé do tenente-coronel João Cabanas horrorizou o juiz.
O juiz bufou e acabou prendendo o coronel.
Não conheço pessoalmente o coronel Cabanas e as informações que tenho dele são as mais desencontradas. Não importa, não é a sua pessoa que está em discussão.
Eu me declaro partidário do pé do tenente-coronel João Cabanas, muito embora ele haja melindrado os nervos do senhor juiz.
Triste bicho deve ser um juiz, neste mundo sem juízo. As leis não prestam: em compensação os homens também não prestam. Por melhor que seja o juiz, ele acaba não prestando também.
A questão do pé Cabanas é uma velha questão humana. Onde devemos colocar os nossos pés?
Há muitos caminhos a seguir, e há velhos caminhantes que dizem que nenhum deles presta. O pé do coronel Cabanas têm seguido caminhos rudes. Têm pisado campos de luta, cimentos de prisões e preconceitos idiotas. Não é um desses pés que amam os tapetes macios e as estradas suaves. É um pé que têm enfrentado pedras, buracos e espinhos. Não sei se ele têm andado errado; sei que ele nunca teve medo de andar.
Um pé desse feitio e desse gênio, não pode desonrar nenhuma cadeira, nenhum banco, nenhuma grade eleitoral. Se eu pudesse usar de alguma franqueza, eu aconselharia o senhor tenente- coronel João Cabanas a colocar o seu famoso pé em um certo lugar macio que está acostumado a pousar sobre uma certa cadeira e que, por esse motivo, se considera muito importante.
Mas não vale à pena. É melhor o coronel Cabanas colocar os dois pés no ar, na direção das estrelas. Andemos neste mundo de cabeça para baixo. Nessa posição talvez possamos ver o mundo em sua verdadeira posição.


Rubem Braga



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